Relátórios de economia
11/9/2020

Gato escaldado

Por

Cristiane Quartaroli

O medo da inflação é algo histórico para o Brasil. Para quem não se recorda ou não vivenciou, chegamos a ter inflação de mais de 50% em apenas um mês, entre as décadas de 1980 e 1990. Após alguns planos econômicos, voltamos a ter uma inflação mais controlada e, desde meados de 2017, podemos dizer que temos uma inflação ao consumidor (medida pelo IPCA) consistentemente abaixo da meta estabelecida pelo Banco Central, hoje, em 4,0% (ver gráfico ao lado). O que permitiu, inclusive, que nossa taxa básica de juros também entrasse em uma trajetória decrescente e pudesse chegar ao atual patamar de 2,0% a.a.

Outro ponto bastante conhecido pelos analistas de inflação é o famoso repasse dos preços no atacado para o varejo. Mas o que isso significa? Os preços no atacado são medidos pelo IGP-M, calculado pela Fundação Getúlio Vargas, e que incorpora em sua cesta, produtos que são comercializados tanto internamente, quanto lá fora. Ou seja, são itens que refletem em sua grande maioria as variações nos preços das commodities internacionais, tais como a soja, o minério de ferro, os combustíveis, dentre outros. E as oscilações nos preços das commodities são dadas em dólares, portanto estão diretamente relacionadas às variações na taxa de câmbio. Mais recentemente, temos visto uma forte pressão dos preços do atacado (ver gráfico ao lado), afinal, nossa taxa de câmbio já subiu cerca de 30% desde o início deste ano.

Mas por que a inflação que chega ao consumidor e é medida pelo IPCA não está refletindo, ainda, as altas no atacado? Primeiramente, porque os produtos da cesta do IPCA não são diretamente comercializados lá fora. Por exemplo, se o preço do trigo subir no mercado internacional, o preço do pãozinho produzido internamente no Brasil também deveria subir, ainda que em menor intensidade e em uma escala de tempo diferente - a palavra bonita aqui é defasagem! Mas ainda não estamos vendo esses efeitos de uma forma muito clara por conta de alguns motivos, dentre os quais listamos:

  1. o baixo nível de atividade econômica por conta da pandemia tem impedido, de certa forma, o repasse dos preços ao consumidor;
  2. as expectativas de inflação estão ancoradas já há bastante tempo devido à credibilidade conquistada pela condução da política monetária. E a expectativa influencia em alguma medida o reajuste futuro;
  3. população com menor poder de compra, devido à redução salarial individual ou da família. Isso faz com que haja um menor espaço para reajustes nos preços de determinados produtos por parte dos agentes. A regra é simples: demanda muito fraca, preço não sobe.

Contudo, como já falamos sobre esse assunto há algum tempo (ver especial), se os preços no atacado já estão refletindo a alta do câmbio, ainda que não em sua totalidade, haverá em algum momento repasse também para os consumidores? Isso poderá colocar em risco a meta estabelecida pelo Banco Central? E como ficarão os juros nesse cenário?

São perguntas que dependem de outros fatores, mas o fato é que já estamos vendo um pouco desse repasse nos preços principalmente dos alimentos ao consumidor (no IPCA). Claro que há uma defasagem e o aumento que se vê nas prateleiras é inferior ao observado no atacado. Mas o aumento nos preços tem aparecido sim. O grupo alimentação do IPCA já subiu quase 5% desde o início deste ano, o que representa cerca de 1p.p. do IPCA total do ano. Em 12 meses, esse grupo mostra uma alta de mais de 10%. É bastante coisa! Possivelmente, porque esses preços têm demanda quase inelástica, ou seja, como todo mundo TEM QUE comer, não importamos preços, os produtos serão consumidos.

Fizemos um exercício simples, (ver tabela abaixo) considerando alguns cenários de desvalorização cambial. Hoje, nossa taxa de câmbio já se desvalorizou cerca de 30% em relação à média do ano passado e influenciou no aumento de 13% no IGP-M, e de 2,3% no IPCA total. Assim, podemos imaginar que o repasse da alta do câmbio foi ao redor de 40% no caso do IGP-M, e de 7% no IPCA. Considerando que o real continue se desvalorizando frente ao dólar nos próximos meses, poderemos ver uma pressão ainda maior nos preços do atacado e, inevitavelmente, essa alta tenderá a ser transferida também ao IPCA, que em um cenário extremo e pessimista (estressou) poderá chegar ao patamar de 3,5%, já bem próximo da meta de 4,0% estabelecida pelo Banco Central. Então, caros leitores, ainda que num horizonte de médio prazo, podemos dizer que esse risco existe.

Por ora, o cenário é ainda confortável, sobretudo em termos de política monetária. Os juros ainda devem permanecer próximos dos 2,0%, enquanto a pressão sobre a inflação está minimamente controlada. Contudo temos que ter em mente a evolução e a perspectiva para o câmbio (que não é das melhores) e alguns fatores a elas associados:

  1. a prorrogação do auxílio emergencial por um período incerto de tempo, mesmo que num valor mais baixo;
  2. a reabertura da economia e, consequentemente, a melhora nos indicadores de nível de atividade, ainda que de forma lenta e gradual;
  3. a retomada da produção industrial e possíveis reajustes que poderão ser realizados a partir de então. Aqui, vale destacar que alguns setores já voltaram ao nível de produção de antes da crise, o que nos faz acreditar que alguns reajustes estão por vir.

Portanto, a combinação desses fatores ajudará, de fato, na recuperação da economia e pode dar algum incentivo para a recomposição dos preços também. Parece que terá mais pressão na inflação aqui, além do câmbio!

Ou seja, aqueles que esperavam uma inflação muito baixa, podem começar a rever esse cenário, mesmo que gradualmente. Para se ter uma ideia, a mediana das projeções para o IPCA no boletim Focus do Banco Central, é de 1,8% segundo a última informação disponível. Mas já esteve em 1,5% em meados de junho. Ou seja, as projeções estão sendo revisadas para cima. Lembrando novamente que o cenário ainda é confortável, mas como gato escaldado, estamos começando a ficar com medo dessa água fria que está por vir.

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